‘Economia do genocídio’: mesmo com freio de Lula, Brasil tem recorde de importação de armas de Israel em 2024

O Brasil bateu consecutivamente, em 2022, 2023 e 2024, recordes no seu histórico de importação de armamentos fabricados por Israel. Os valores, que na média histórica desde 1997 raramente ultrapassavam US$ 1 milhão por ano, dispararam para US$ 9 milhões em 2022, US$ 16,5 milhões em 2023 e chegaram a US$ 21,7 milhões em 2024 (o equivalente a R$ 120,6 milhões).

O levantamento foi feito pelo Brasil de Fato com base em dados abertos da plataforma ComexStat, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) e contempla somente a categoria armas e munições. Os números indicam um aprofundamento nas relações comerciais entre os dois países no último período, ainda que, politicamente, Israel e Brasil estejam em campos opostos desde o início do massacre na Faixa de Gaza, em outubro de 2023.

Mesmo com a escalada da violência israelense – que já levou a mais de 60 mil mortes e outros milhares de deslocamentos forçados entre a população palestina –, as importações de armas vindas de Israel seguiram. O cenário contrasta com a posição adotada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que chegou a classificar as ações de Israel como “genocídio” e anunciou medidas de retaliação diplomática e comercial.

Entre as principais ações do governo brasileiro, anunciadas na última semana pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, estão o bloqueio de exportações de equipamentos de defesa para Israel. Também foram anunciadas investigações sobre importações de produtos oriundos de assentamentos ilegais na Cisjordânia e apoio à criação de um mecanismo internacional de verificação e denúncia de violações contra o povo palestino.

“Nós não toleraremos a impunidade contínua”, afirmou o chanceler, ao anunciar que o Brasil intervirá no processo em curso na Corte Internacional de Justiça, aberto pela África do Sul, com base na Convenção da ONU contra o Genocídio.

Apesar da firmeza do discurso diplomático, os dados de 2024 demonstram que o freio imposto pela presidência de Lula não foi totalmente efetivo, mas impediu um cenário de importação de armamentos que poderia ter sido mais volumoso.

De acordo com apuração do Brasil de Fato junto ao Ministério da Defesa e às secretarias estaduais de segurança, cerca de R$ 18,5 milhões do total importado em 2024 correspondem à entrega de mísseis Spike LR2, lançadores e simuladores ao Exército Brasileiro. Os equipamentos compõem a nova 1ª Companhia de Mísseis Anticarro Mecanizada, inaugurada em dezembro de 2024, e incorporada a uma das Forças de Emprego Estratégico do Exército.

O contrato, firmado ainda durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), em maio de 2022, previa a aquisição de 100 mísseis e 10 lançadores da empresa israelense Rafael Advanced Defense Systems, no valor de US$ 17,5 milhões. Apesar de a compra ter ocorrido antes do início da guerra em Gaza, a entrega dos equipamentos foi concluída apenas em 2024.

Além do Exército, o restante das compras de armamentos israelenses em 2024 veio, majoritariamente, das polícias estaduais.

Fuzis, metralhadoras e miras da empresa Israel Weapon Industries (IWI) foram adquiridos por forças de segurança de ao menos dez estados brasileiros, consolidando uma espécie de “corrida armamentista” entre governos subnacionais. Em alguns casos, como no Espírito Santo e em Santa Catarina, as polícias locais já utilizam centenas de fuzis Arad – arma que se popularizou entre as tropas de elite e passou a ser tratada como símbolo de modernização. Também figuram na lista os estados de São Paulo, Paraíba, Amazonas, Bahia, entre outros.

Israel poderia ter se tornado o maior vendedor de armamentos de guerra ao Brasil em 2024, caso tivesse sido firmado o contrato avaliado entre R$ 750 milhões e R$ 1 bilhão para a aquisição de 36 viaturas obuseiros Atmos 2000, também da empresa Elbit Systems, com sede em Israel. O negócio, já licitado e aprovado pelo Exército, segue suspenso por ordem do presidente Lula, que teria imposto a condição de que não haveria compra de equipamentos bélicos israelenses enquanto persistisse o conflito com o Hamas. Perguntados sobre o tema, o Exército Brasileiro e o Ministério da Defesa não responderam ao Brasil de Fato.

Top 5 países exportadores de armas para o Brasil em 2024

  1. Reino Unido – US$ 132.307.572
  2. Israel – US$ 21.714.585
  3. Estados Unidos – US$ 17.674.032
  4. Itália – US$ 15.393.240
  5. França – US$ 15.360.767

A economia do genocídio: Israel, armas e o lucro da guerra

“Os armamentos israelenses são amplamente testados. E não é em laboratório, é contra o povo palestino.” A análise é de Ana Penido, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Segundo ela, o diferencial que impulsiona a exportação desses equipamentos está justamente na testagem em cenários reais de conflito, como ocorre há décadas nos territórios ocupados. “E esse ‘testado’ é cotidiana e rotineiramente contra o povo palestino”, lamenta a pesquisadora.

A condição de “produto testado” é, segundo especialistas, um dos principais atrativos da indústria bélica de Israel no mercado internacional. A própria existência prolongada da ocupação e da repressão nos territórios palestinos transformou o controle populacional em modelo de negócio.

“Israel sempre foi historicamente dependente da sua indústria da ocupação”, afirma o professor Bruno Huberman, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ele aponta que a economia israelense está profundamente enraizada em práticas de “controle, vigilância, segregação e morte”.

Esse modelo se transformou, nas palavras de Huberman, em uma “indústria do genocídio”. A expressão não é meramente retórica: ela está presente em documentos oficiais de organismos internacionais. Em janeiro e julho de 2024, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu decisões reconhecendo que há plausibilidade de crime de genocídio por parte de Israel em Gaza, e orientou que os Estados interrompam qualquer apoio direto ou indireto a esse processo.

Enquanto isso, no mundo dos negócios, a indústria bélica israelense segue lucrando e atraindo clientes. “Quando você está comprando armamentos, você está alimentando, objetivamente falando, a economia do país”, aponta Ana Penido.

Maren Mantovani, do Comitê Nacional Palestino pelo BDS – a campanha Boicote, Desinvestimento e Sanções –, é ainda mais direta: “Cada real destinado à indústria militar israelense alimenta os crimes de Israel”.

Mantovani usa como exemplo o caso do míssil Spike LR2, o mesmo entregue ao Exército Brasileiro. Segundo ela, embora o equipamento seja comercializado como míssil antitanque, “nunca foi usado contra tanques”, sendo empregado quase exclusivamente contra alvos civis, como carros, ambulâncias e apartamentos. “A menos que o Brasil queira se envolver em genocídio, o país comprou mísseis que nunca foram testados pelos fins pelos quais foram comprados”, diz.

Testes do míssil Spike LR2 pelo Exército em 2024; armamento foi adquirido antes da guerra em Gaza, mas entregue durante o conflito (Reprodução/Exército Brasileiro)

Além das exportações de armas, há um segundo aspecto estruturante: a conexão entre a indústria militar e a de tecnologia de ponta. Israel tem liderado projetos de automação e inteligência artificial, com muitas dessas tecnologias tendo origem em aplicações militares. Huberman cita o exemplo de uma empresa israelense que criou sistemas de navegação para drones militares e, mais tarde, adaptou-os a veículos civis como os carros autônomos. “Tudo é conectado aí”, sintetiza.

Outro setor de destaque é o da espionagem e vigilância, vide os sistemas Pegasus e o Cognyte. É esse tipo de tecnologia que tem sido vendida a governos do mundo inteiro, e que amplia as capacidades de controle interno, inclusive contra populações historicamente criminalizadas. “Eles sempre foram bons nisso. Essa é uma parte importante do portfólio deles, dos produtos que eles oferecem, e tem tudo a ver com o nosso modelo de segurança pública”, avalia Penido.

É nesse ponto que o debate se volta ao Brasil. Ao importar armamentos e equipamentos testados contra civis palestinos, as forças policiais brasileiras incorporam métodos e ferramentas que, segundo Mantovani, têm o potencial de “aumentar a repressão, especialmente contra pessoas negras e de favelas, bem como contra movimentos sociais”.

Para a representante da BDS, romper laços militares com Israel “não é apenas uma obrigação moral”, mas um dever jurídico. “Um embargo militar abrangente contra um Estado culpado de ocupação militar ilegal, apartheid e ‘genocídio plausível’ não é uma questão de discricionariedade.”

Os fuzis IWI Arad adquiridos pelo governo do Espírito Santo registrados pela delegação que visitou Israel para testar as armas (Foto: Divulgação/Sesp)

Comprar armas é fazer política

A escolha por armamentos israelenses não se dá apenas por critérios técnicos. Para Ana Penido, “comprar armamentos é uma escolha ideológica, é fazer política externa, é se alinhar a determinadas práticas militares”. Ela ressalta que, no caso brasileiro, existe uma relação de longa data entre estruturas do Estado e empresas de segurança de Israel. Essa relação envolve o Ministério da Defesa, as Forças Armadas e também as polícias estaduais.

Bruno Huberman destaca que essa aproximação começou ainda nos primeiros mandatos de Lula, nos anos 2000, e se aprofundou durante o governo de Jair Bolsonaro. “O governo Bolsonaro apenas continuou… ele aprofundou uma política que o Lula já vinha fazendo de aproximação com o Estado de Israel, no qual a aquisição de bens militares possui uma centralidade muito grande”, aponta.

A atual gestão petista, no entanto, passou a adotar uma postura mais crítica após o início do genocídio em Gaza. A suspensão da compra dos obuseiros israelenses, avaliada em até R$ 1 bilhão, é resultado dessa mudança.

Segundo Penido, a posição do governo é reflexo da pressão popular e internacional: “Ele se posicionou ativamente no sentido de suspender outras novas compras dentro do governo dele”, diz. “Está na nossa conta, de a gente ter se mobilizado em prol da Palestina”, avalia.

Mas há limites na ação do governo. Contratos de aquisição militar firmados no passado continuam em execução, muitos deles com pagamentos em fases. Além disso, os órgãos responsáveis por essas compras – como o Ministério da Defesa e os governos estaduais – possuem autonomia para abrir editais e importar armamentos sem autorização direta do Executivo federal.

Para Huberman, isso explica por que as importações seguiram crescendo mesmo em meio à possibilidade ruptura diplomática com Israel. “As instituições e seus representantes possuem uma relação histórica comercial muito boa e alinhamento ideológico com Israel, que faz com que eles procurem os armamentos israelenses, que são muito bem posicionados no ponto de vista de marketing no mercado internacional.”

Veículo obuseiro Atmos 2000, da empresa israelense Elbit Systems; compra de 36 unidades pelo Brasil foi suspensa por decisão de Lula (Foto: Divulgação/Elbid Systems)

Soberania ameaçada: o futuro da defesa brasileira

A escalada da violência em diversas regiões do mundo tem impulsionado uma nova corrida armamentista global, com aumento significativo nos gastos militares de vários países.

Segundo o professor Bruno Huberman, esse novo ciclo de rearmamento atende não apenas a uma lógica de segurança, mas também a interesses econômicos de grandes complexos industriais militares, como o dos Estados Unidos. A pressão por compras externas cresce inclusive sobre países do Sul Global, como o Brasil, que historicamente buscaram uma política externa mais voltada à diplomacia.

“A gente é uma das dez maiores economias do mundo, mas não está entre os vinte maiores exércitos. Isso é positivo, não um problema”, defende. Ao mesmo tempo, ele alerta que qualquer esforço de fortalecimento das capacidades militares brasileiras precisa considerar o risco interno representado pelas Forças Armadas: “Sempre que há movimentações de aumento das capacidades militares do Brasil, isso abre um horizonte golpista novo”.

A dependência externa para suprimento de armamentos levanta um debate mais amplo sobre soberania nacional. Para Huberman, o Brasil deveria investir no desenvolvimento de sua própria indústria de defesa, em vez de manter a lógica de importação de equipamentos estrangeiros. “Antes de pensar a respeito de capacidades coercitivas, a gente tem que pensar em soberania”, afirma.

Ele defende uma reorganização dos gastos federais, com menos recursos direcionados para custeio e mais para pesquisa e inovação: “Gastar menos com a aposentadoria dos militares e mais com desenvolvimento de tecnologia de defesa”, resume. Para o pesquisador, o país tem potencial para fabricar seus próprios fuzis, mísseis, sistemas de vigilância e comunicação, o que também reduziria vulnerabilidades, como a atual dependência de sistemas como a Starlink, do bilionário Elon Musk.

Ana Penido também vê espaço para repensar a política industrial de defesa. “É possível sim pensar o emprego de parte desses orçamentos para a produção de equipamentos aqui no Brasil”, afirma. Segundo ela, fortalecer a indústria nacional nesse setor pode ser uma estratégia para gerar empregos qualificados, diminuir a dependência de importações e desenvolver ciência e tecnologia.

Para ela, diante da ascensão global da militarização e do uso da guerra como instrumento de política, defender a paz não é uma posição ingênua, mas uma escolha estratégica. “A gente tem que ter coragem de defender a paz”, afirma.

Para ela, o pacifismo, nesse cenário, representa a recusa a uma lógica que transforma vidas em laboratório e territórios em mercado. “A guerra é uma forma de resolver conflitos. A política é outra. E a gente ainda acredita na política.” Penido destaca que manter o Brasil fora de guerras e do financiamento de estruturas que as sustentam é também uma forma de proteger o país internamente.

“Se a gente defende a paz, a gente pode gastar mais com saúde, com educação, com assistência social. É disso que a gente está falando”, conclui.

D1 com Brasil de Fato

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