Entrando no último ano deste mandato, o governo do presidente Lula tem na trajetória dos gastos um dos flancos mais criticados pelo mercado financeiro e pela oposição. Com foco na recomposição de receitas, o time do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conseguiu impor o arcabouço fiscal, regra em vigor desde 2024, que limita a alta real (descontada a inflação) das despesas a 2,5% ao ano.
Ainda que tenha conseguido desacelerar o ritmo do gasto em relação ao 1º ano da atual gestão, o saldo mostra que a despesa total cresceu, em média, 5% ao ano acima da inflação nos quase três anos de gestão Lula.
Às exceções originais, como transferências a estados e municípios, Fundeb (dinheiro para educação), e créditos extraordinários (como o do Rio Grande do Sul), somaram-se outras, para driblar o limite, como as regras de precatórios (dívidas judiciais para as quais não cabe recurso) e a recentes retirada de parte dos recursos para Defesa e temporários de saúde e educação.
O governo não tem controle, porém, sobre todas as despesas, como é o caso do Fundeb e das emendas. A equipe econômica tem se defendido dizendo que começou o governo tendo que ajustar o Orçamento legado pela administração passada. Evoca dados que mostram que a despesa em relação ao tamanho da economia não só está controlada como até abaixo do que se via no período da regra fiscal anterior, o teto de gastos, nos governos Temer e Bolsonaro.
Naquele período, de 2016 a 2019 (a partir de 2020, os dados ficam distorcidos pela pandemia), a despesa em relação ao PIB ficou na média em 19,6%. Hoje, está ao redor de 18,9% do PIB. Mas a medição em relação ao PIB, em razão de detalhes estatísticos (como efeito da inflação considerada para apuração), dificulta leitura mais acurada sobre a trajetória do gasto público, ainda que deva ser considerada.

Dentre as discussões sobre o que fazer com o arcabouço fiscal em 2027, uma delas é se deveria ser mantida a regra de reajuste da despesa em 70% da variação da receita, que tem levado a uma alta de 2,5% do limite de gastos acima da inflação. Mesmo no governo há quem defenda que o limite caia para algo entre 1,5% e 2%, o que significaria freio maior, ainda que as exceções acabem impondo gasto total maior.
Indexação à receita
O chefe de Macroeconomia do ASA e ex-secretário do Tesouro, Jeferson Bittencourt, observa que, na vigência da norma atual, o único indexador de gastos que o governo conseguiu segurar foi o salário mínimo, que passou a ser atualizado com o mesmo percentual do limite de gastos, de até 2,5% acima da inflação, depois da gestão Lula retomar o ganho real do piso nacional.
Os outros indexadores das despesas obrigatórias não foram alvo de reformas que limitassem seu efeito. É o caso da demografia, que afeta os benefícios previdenciários e assistenciais, e da receita, que voltou a ser fator relevante com a decisão do governo de retomar a indexação para os pisos de saúde e educação. Nessa situação, ainda que o aumento do salário mínimo não contribua para estourar o limite, tampouco abre espaço para acomodar outras pressões.
— Limitar o salário mínimo ao arcabouço ajuda a não atrapalhar a regra, mas não a sustentá-la — diz.
Para o economista, a sustentação depende de reformas que enfrentem regras de acesso aos benefícios e a indexação à receita, o mecanismo considerado mais perverso no arcabouço fiscal, em que o governo está sempre busca elevar a arrecadação para viabilizar o crescimento de 2,5% dos gastos e para melhorar o resultado primário rapidamente.
Para Bittencourt, no cenário que o limite de gastos se mantenha, é preciso rever parâmetros, para evitar que a economia gerada pelas reformas seja consumida com despesas.
Despesas que mais cresceram
Entre as despesas que mais cresceram em média nos três anos de governo Lula (até outubro de 2025) estão precatórios, subsídios, Bolsa Família, Fundeb, investimentos, Educação e Saúde e emendas parlamentares. Apesar de estar sempre no debate, o gasto com pessoal teve alta média de 1,2% acima da inflação.
O desempenho ano a ano varia entre as rubricas. Embora em 2023 o crescimento tenha sido generalizado na maioria dos itens, com a “PEC da Transição”, a partir de 2024 as histórias variam. O Fundeb, por exemplo, que está fora do teto, cresce a um ritmo superior a 20% nos últimos dois anos, enquanto o Bolsa Família teve quedas reais seguidas, após subir mais de 80% em 2023 com o reajuste para R$ 600.
De forma geral, o ritmo de despesas nesse mandato de Lula cresce algo abaixo do período de 2003 a 2015, nas três administrações petistas (Lula 1 e 2 e Dilma).
Em nota, o Ministério da Fazenda afirma que a dinâmica das despesas observada até o momento é compatível com o desenho do arcabouço fiscal e tem permitido o pleno cumprimento de seus limites, “que não visam congelar o gasto público, mas assegurar previsibilidade e sustentabilidade fiscal ao longo do tempo”.
A pasta destaca que algumas despesas obrigatórias crescem acima do limite por fatores estruturais, legais e judiciais, mas o comportamento é monitorado pelo Poder Executivo e acomodado por expansão menor de outras despesas.
A Fazenda disse que aprovou medidas no fim de 2024 para fortalecer o regime fiscal, mas que as ações são graduais e estruturais, impossibilitando que análises de curto prazo capturem todos os efeitos.
“O governo segue atento à dinâmica das despesas e estudando aperfeiçoamentos adicionais, como no caso do Seguro Defeso”, completa, acrescentando que as exceções às regras fiscais decorrem de passivos herdados e eventos imprevisíveis, como as enchentes no Rio Grande do Sul.
Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e coordenador do Observatório Fiscal do FGV Ibre, Manoel Pires diz que dados mostram duas situações:
— O primeiro quadro é que o gasto real cresceu muito no primeiro ano do governo Lula. Isso aconteceu em decorrência da emenda da transição e do pagamento extraordinário dos precatórios.
A “PEC da Transição”, aprovada na virada de 2022 para 2023, lembra Pires, foi justificada como uma forma de organizar o Orçamento após as travas criadas pelo teto de gastos ter tornado a situação inviável.
Os R$ 145 bilhões aprovados pelo Congresso seriam para bancar uma série de despesas, inclusive contratadas pelo governo anterior, que teriam que ser executadas de uma forma ou de outra. É algo sempre lembrado por Haddad, que cobra que isso seja considerado nas análises de execução fiscal.
— Concordo com esse ponto, mas ao longo do processo ficou muito claro que ela estava, de certa forma, indo um pouco além disso. A emenda da transição poderia ter sido um pouco mais enxuta — diz Pires.
Ele também aponta que o pagamento dos precatórios foi uma liberalidade do governo, dada a decisão tomada na gestão anterior de se postergar a despesa, e que isso distorce os dados de 2022.
— Agora, a decisão de pagar tudo à vista daquela forma foi deliberada do governo. Isso fez com que o gasto crescesse. Para essa decisão ser tomada, acredito eu, pesou o ritmo da atividade econômica no segundo semestre de 2023, que foi mais fraco. Então foi visto como uma forma de tentar estimular a economia.
Percepção de fragilidade
Pires aponta que com o arcabouço de fato há uma moderação na taxa de crescimento da despesa:
— A mensagem é que o arcabouço, de certa forma, consegue gerar alguma disciplina nas decisões de gasto do governo. A parte negativa é que algumas coisas ainda estão fora do Orçamento e isso está gerando uma sensação de ineficácia do arcabouço, de que você tem que discutir o arcabouço como um todo. Estou um pouco mais preocupado com esse tipo de interpretação que está sendo gerada em função da percepção de fragilidade do arcabouço.
Passados a “PEC da Transição” e o pagamento de precatórios, o economista Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos, destaca que o gasto continuou crescendo em 2024, demonstrando algumas fragilidades do arcabouço. Para ele, um dos problemas da regra fiscal é não conseguir acomodar situações não previstas dentro dos limites.
— Qualquer evento excepcional, o arcabouço é incapaz de acomodar essa despesa dentro do limite, e aí precisa-se criar sempre uma exceção, seja via Legislativo, seja via Judiciário, para poder ampliar a despesa, e isso tem como consequência uma despesa total que vai crescer acima do limite superior.
Apesar disso, Sbardelotto avalia que o que causa mais preocupação são as rubricas que permanecem dentro do limite e que têm crescimento significativo: Previdência, seguro-desemprego e, principalmente, Benefício de Prestação Continuada (BPC, pago a idosos e pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade), que tem tido expansão de dois dígitos nos últimos anos.
A preocupação deriva da constatação de que esse movimento vai espremendo as despesas livres, o que, em algum momento, vai provocar a incapacidade de manter serviços públicos essenciais. Segundo o economista, isso representaria o momento de ruptura da regra fiscal, como ocorreu com o teto de gastos entre 2021 e 2022.
Necessidade de reformas
Nesse contexto, Sbardelotto observa que as despesas “menos protegidas” acabam sendo mais prejudicadas. De um lado, cita, os gastos com saúde e educação são privilegiados com os mínimos constitucionais, de outro lado, as demais viram margem de manobra para fazer os ajustes necessários para que o governo cumpra a regra de 2,5%. Esse fator impulsiona a batalha dos setores menos privilegiados para buscar formas de proteção, como aconteceu com os gastos da Defesa:
— Só que se você resguarda todas as despesas, não tem onde fazer o ajuste. E aí chega-se à situação em que, de fato, inviabiliza-se o arcabouço fiscal.
Em sua avaliação, não há outra solução para manter o arcabouço vigente do que fazer reformas para conter o aumento das despesas. Para ele, a principal é a rediscussão da vinculação do salário mínimo a benefícios previdenciários e assistenciais, que precisará ser debatida no próximo governo.
Nas contas da XP, seja quem for o presidente, na atual dinâmica de crescimento das despesas obrigatórias, a partir de 2028 haverá rompimento da regra fiscal.
Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
D1 com O Globo