Em uma fábrica farmacêutica em Chengdu, na China, um pedido feito por Thomas Leung em Manhattan, nos Estados Unidos, em janeiro está suspenso. A remessa inclui uma variedade de grânulos concentrados de ervas usados na medicina tradicional chinesa. Há “dang gui”, também conhecida como angélica-chinesa, usada para tratar doenças ginecológicas; “chai hu”, ou orelha-de-lebre, erva frequentemente usada para acalmar os nervos; e “huang qi”, ou raiz de astrágalo, erva tônica que promove o fortalecimento imunológico. Não está claro quando a remessa chegará à Kamwo Meridian Herbs, uma loja de artigos básicos da cidade de mais de meio século que afirma ser o maior dispensário de medicina tradicional chinesa da Costa Leste. Quando chegar, as ervas serão distribuídas a médicos e pacientes que procuram tratar resfriados, dores e outras doenças — mas, por enquanto, as ervas devem ficar retidas.
Leung, CEO da Kamwo, suspendeu a ordem depois que o presidente impôs uma tarifa mínima de 145% sobre todos os produtos chineses no mês passado. A China respondeu aumentando as tarifas sobre artigos americanos para 125%, e o impasse resultante congelou efetivamente o comércio entre os dois países. A medicina tradicional chinesa é apenas uma das muitas indústrias que foram afetadas pelos impostos e pela incerteza sobre quando, ou se, elas serão suspensas. Menos navios já estão chegando aos portos americanos, e os consumidores podem começar a ver prateleiras vazias no início de junho.
A guerra comercial paralisou os importadores, disse Thomas, farmacêutico especializado em ervas de quarta geração e o terceiro membro de sua família a liderar a Kamwo. Mesmo que estivesse disposto a pagar o imposto de importação, disse ele, correria o risco de ficar preso a um estoque proibitivamente caro que poucas pessoas estariam dispostas a comprar se as tarifas fossem revertidas. “Ninguém vai fazer nada até sabermos o que está acontecendo”, disse o empresário.
Desde a inauguração em 1973, a Kamwo recebe receitas prescritas por médicos da medicina tradicional chinesa e vendia ervas por quilo. Recentemente, porém, parou de anunciar as vendas a granel. Com as importações efetivamente suspensas, houve uma corrida por plantas e suprimentos que já fez os preços dispararem, afirma Thomas Leung. O espaço e o tempo também limitam o estoque típico de um dispensário de medicina tradicional chinesa. As ervas podem estragar ou ficar obsoletas, e mesmo que fosse possível estocar um grande estoque, há a questão de onde armazenar tudo. Antes do anúncio das tarifas, a Kamwo esperava faturar US$ 6,5 milhões este ano. O valor é equivalente a mais de R$ 36 milhões. A empresa “tem a sorte” de ser um empreendimento grande que tem “talvez oito meses de ervas” em estoque, calcula ele, mas “nem toda empresa menor terá esse luxo”.
A Medicina Tradicional Chinesa, ou MTC, cresceu exponencialmente nos últimos 20 anos, impulsionada pela imigração e pela disposição dos consumidores americanos em experimentar algo novo em busca de alívio, ressalta Arthur Dong, professor da McDonough School of Business da Universidade de Georgetown. Não está claro exatamente o tamanho da indústria da MTC nos Estados Unidos. A China exportou quase US$ 5,5 bilhões (aproximadamente R$ 31 bilhões) em produtos do setor em 2023, ante US$ 3,6 bilhões (cerca de R$ 20 bilhões) em 2017, de acordo com a Statista, plataforma alemã especializada em coleta e visualização de dados. Uma guerra comercial prolongada prejudicaria a indústria da Traditional Chinese Medicine (Medicina Tradicional Chinesa, ou MTC, em tradução livre), assim como outros setores de nicho, mas populares, que dependem amplamente de importações. Jaya Wen, professora assistente da Harvard Business School, disse que a MTC “provavelmente será altamente afetada negativamente em comparação com outros setores”.
Muitos dispensários são lojas familiares que operam com margens de lucro mínimas. Quando ficam sem estoque, ficam com prateleiras vazias, sem clientes e com um cheque de aluguel devido todo mês. As tarifas também podem ameaçar os meios de subsistência das pessoas ao longo de toda a cadeia de suprimentos, incluindo os funcionários das lojas que recebem os pedidos e os caminhoneiros que transportam esses ingredientes até seus destinos finais.
Muitas das ervas usadas na MTC não podem ser cultivadas fora da China, explica Leung, e são processadas por trabalhadores qualificados, seguindo métodos altamente especializados que foram estabelecidos há gerações. “Se eu fizer uma lista de todas as coisas que precisamos fazer para fomentar isso, como uma indústria de ervas chinesa nos Estados Unidos, é impossível. É literalmente impossível”, assegura o empreendedor.
A interrupção da MTC em território americano “será bastante generalizada, e esta é apenas uma pequena indústria”, alerta Dong. “Esta é uma das milhares de indústrias que serão afetadas”, complementa o especialista. Como Trump muda de ideia com frequência, opina Dong, é difícil para as empresas planejarem o futuro. É por isso que “vimos as engrenagens do comércio pararem completamente”. “Nenhum CEO de qualquer empresa, seja ela grande ou pequena, está disposto a fazer investimentos, tomar empréstimos, aumentar um volume de negócios ou se comprometer com qualquer coisa além dos próximos dois meses devido a essa incerteza”, comenta o professor. Ainda assim, apesar dos desafios econômicos, G.A. Donovan, membro do Asia Society Policy Institute, alega que “não descartaria esse setor”.
Os praticantes da MTC na China vivenciaram um “século XX muito turbulento”, relembra, referindo-se à violenta convulsão política da Revolução Cultural de Mao Zedong. Como resultado, eles “têm a resiliência necessária para lidar com isso”. “Poderíamos esperar que eles respondessem a esse desafio com muita engenhosidade”, considera. A Kamwo envia para todos os 50 estados dos EUA, Canadá e Europa, e cerca de 75% de seus clientes não são chineses, conta Leung. Entre eles está Lyn Pierre, de 58 anos, que entrou na Kamwo em uma tarde ensolarada de sexta-feira procurando sua receita. Corredora, ela usou a MTC em vários momentos da vida para se manter livre de lesões, mas agora teme que os medicamentos já caros que toma custem ainda mais. “Claro que estou preocupada”, lamenta Pierre, sentada em um banquinho dentro da loja, acrescentando: “Acho que vai ser um pouco caro.”
Pierre disse que já é difícil ganhar a vida, especialmente nestes tempos de custos altíssimos. A ideia de ervas custarem mais do que já custam é assustadora. “Não é fácil”, disse ela. “É realmente uma luta.” A acupuntura, antiga técnica médica chinesa para alívio da dor, também pode sentir o impacto da guerra comercial. Beth Nugent, presidente da Sociedade de Acupuntura de Nova York, alerta que a maioria dos acupunturistas “opera com margens de lucro muito reduzidas”, acrescentando que ela e seus colegas “tendem a não cobrar muito das pessoas porque simplesmente amamos o que fazemos”.
Ervas, tônicos e agulhas são essenciais para a prática de Nugent. Embora existam outras fontes para alguns itens, como agulhas, eles “podem não ser de tão alta qualidade quanto os que podemos obter da China”, justifica ela. “Se eu pudesse cobrar de alguém o valor mínimo que ele pudesse pagar para que fizesse acupuntura, é isso que eu faria. Mas se chegar a um ponto em que eu não consiga manter as luzes acesas no meu consultório, como vou sobreviver como profissional?”, questiona Beth. Ela teme que os pacientes não a procurem se ela for forçada a aumentar os preços, talvez porque não tenham mais condições de pagar pelos tratamentos. Ela pensa no jogador de hóquei que ajudou a voltar ao gelo, no casal que finalmente concebeu após problemas de fertilidade e no paciente com vertigem que se recuperou. “Isso não é algo esotérico ou algo fora do alcance das pessoas comuns. São pessoas comuns que estão recebendo este tratamento”, finaliza.
D1 com O Globo